Nascida em 1998 em San Francisco, nos Estados Unidos, a Bicicletada é uma reivindicação de ciclistas sobre seu espaço nas ruas. A postura de seus participantes é anticarros e de supervisão do (mau-)comportamento dos motoristas. Sem líderes definidos, cabe a cada um que se identifica com a Bicicletada ir educando motoristas no dia a dia para que o convívio entre bicicletas e carros no trânsito torne-se cada vez mais assimilável.
O movimento é inspirado no Critical Mass, evento que ocorre na última sexta-feira do mês em várias cidades do mundo, reunindo ciclistas num recorrido que comunica à comunidade e aos atuantes no trânsito que cada ciclista merece ser respeitado por ser um carro a menos nas ruas.
A crítica direta do movimento é a falta de espaços públicos destinados a veículos leves movidos à propulsão humana – a bicicleta é o principal deles, mas também cabem nessa definição skates, patinetes e patins. Há uma oposição clara aos automóveis no trânsito e nos estacionamentos públicos e privados, que também carecem ou esquecem do espaço destinado à bicicleta.
Recentemente, a Massa Crítica paulistana esteve no recém-inaugurado Shopping Vila Olímpia para reivindicar bicicletários. A repercussão na mídia foi grande e em menos de uma semana o shopping destinou postos exclusivos para as bicicletas.
Nesta sexta, dia 26 de fevereiro, não havia uma reivindicação específica. Houve o tradicional passeio partindo do início da Av. Paulista (próximo à Consolação) às 20h, horário e dia da semana onde o trânsito da cidade chega ao seu ápice.
Devia haver aproximadamente 200 cicilistas. Percorremos a Paulista em direção ao Paraíso, passamos pela Liberdade, chegamos à Praça de Sé, cruzamos o lindo Centro antigo e subimos pela Augusta.
Os gritos do passeio são como “menos carro, mais bicicletas”, “mais tubaína, menos gasolina”. Os ciclistas, aparentemente envolvidos, ajudam a segurar o trânsito para a passagem do grupo, educam motoristas e respeitam-se entre si.
Mas dentro de tudo isso que parece lindo, orquestrado e democrático, há uma contradição: pela primeira vez, vi o grupo desrespeitando pedestres e passantes sistematicamente. Além de, desta vez, a Massa Crítica ter ocupado algumas calçadas e ter pego algumas contra-mãos, houve baderna em pontos-de-ônibus onde trabalhadores exaustos tentavam pegar o transporte público coletivo para voltar para casa. Cheguei a ver cenas de ciclista que virou muito macho num grupo de 200 pessoas discutindo com motoristas de ônibus e dificultando a vida de quem usa o transporte público. A meu ver, ônibus está dentro da filosofia do movimento, que abomina o automóvel privado individual, mas tem discernimento suficiente para não demonizar qualquer coisa sobre rodas queimando gasolina no asfalto.
Quem prega o respeito individual usando o trânsito como palco deve respeitar. Não foi o que aconteceu nessa sexta. O ápice da dissincronia com a filosofia do movimento se deu na subida da Rua Augusta. As mulheres na calçadas eram cantadas grosseiramente por alguns ciclistas. Casais de namorados eram incomodados e alguns gays que iniciavam sua noitada foram ridicularizados. Enfim, era o movimento que se apropria do nome “Massa Crítica” e tem como inspiração uma cidade libertária e respeitosa como San Francisco reproduzindo o que a nossa sociedade tem de pior: chauvinismo e machismo.
Quem já leu A Revolução dos Bichos, de George Orwell, viu que todo grupo muito igualitário entre si, de princípios bons e, muitas vezes, anarquistas, quando está no poder, assume as identidades do grupo anterior: há líderes que se acham naturalmente no papel de assumir o controle da situação, há os que se impõem pela força, há os que se julgam mais inteligentes. E, a partir daí, acabou a igualdade. Tudo volta ao normal e à essência da nossa natureza, com cada ser humano exigindo o que acha ser de direito para si pela diferenciação que apresenta frente aos outros.
Pela falta de um trabalho institucional da Bicicletada, que não educa seus participantes, não resgata periodicamente seus objetivos, não educa os motoristas e nem explica para quem adere ao grupo na última sexta-feira do mês qual o propósito do passeio, o movimento vai ficando com cara de trânsito latino-americano, onde quem tem a melhor bicicleta corre mais, quem tem a bicicleta maior é mais machão, quem tá há mais tempo no grupo é mais agressivo.
Como nem tudo está perdido, na pizza após o passeio, foi possível compartilhar esse tipo de ideia com outras pessoas que estavam no movimento. A sorte é que vi que já existe uma resistência crítica a esta situação que parece estar saindo do controle. Afinal, quem prega respeito tem que, antes de tudo, respeitar.